Quirino, vaqueiro do rei
Era uma vez um rei que possuía muitas fazendas de gado entregues a vaqueiros de confiança. Uma das melhores propriedades era confiada ao negro Quirino, que tinha fama de não mentir. O rei vivia gabando o vaqueiro, apontando-o como modelo de veracidade. Essa opinião despertava inveja entre os fidalgos e um deles, rico e poderoso, resolveu acabar com a celebridade moral de Quirino, vaqueiro do rei.Na fazenda de que Quirino se encarregava, o orgulho do rei era um boi barroso, bonito como não havia outro. Cada ano o vaqueiro ia até a casa do rei prestar contas.Chegava, riscando o cavalo e dizia por aqui assim:— Pronto, meu amo! Aqui está Quirino, vaqueiro do rei!O rei perguntava:— Como vai, Quirino?— Com a graça de Deus e o favor do meu amo!— A obrigação?— Em paz e a salvamento.— As vacas?— Umas gordas outras magras.— O boi barroso?— Vai forte, valente e mimoso!O fidalgo disse ao rei que Quirino era capaz de mentir. O rei repeliu a idéia.— Vamos apostar, majestade?— Pois vamos! Dez fazendas de gado, cem touros escavadores e duzentas vacas leiteiras com chifres dourados?— Está apostado!O fidalgo tinha uma filha muito bonita, chamada Rosa. Chamou a moça e contou a aposta. Por dinheiro, Quirino não peca. Com ameaça, Quirino não peca. Abaixo de Deus, a mulher pode com tudo que tem fôlego.Rosa se vestiu como uma mulher do povo e foi até a fazenda onde estava o boi barroso. Encontrou Quirino e conversou com ele, fazendo tanto trejeito, dando tanta volta no corpo que o vaqueiro ficou alvoroçado e se apaixonou por ela.Ficaram muitos meses vivendo juntos, andando para lá e para cá, no serviço do campo. Numa manhã Rosa disse:— Quirino, você gosta de mim?— Como demais...— Quer bem ao seu filhinho que vai nascer?— Mais do que a luz do dia!— Pois se não quiser que seu filho morra, mate o boi barroso que eu quero comer o fígado bem assadinho...Quirino ficou assombrado mas obedeceu. Matou o boi barroso e a mulher comeu o fígado assado.Dias depois era o tempo de o vaqueiro ir até a presença do rei. Rosa mandou dizer ao seu pai que o boi barroso fora morto.Quirino vestiu a véstia de couro, perneiras, gibão, guarda-peito, calçou o guante, pôs o chapéu na cabeça, passou o barbicacho, montou no cavalo de confiança e galopou para a casa do rei.Foi viajando e pensando. Finalmente avistou o palácio e parou o cavalo. Que ia dizer ao rei? Era melhor preparar a conversa. Deu de rédeas, andou uns passos, riscou o cavalo e disse:— Chego e digo assim: "Pronto senhor meu amo! Aqui está Quirino, vaqueiro do rei!" Ele diz: "Como vai, Quirino?" Eu respondo: "Com a graça de Deus e o favor do meu amo!" "Obrigação?" "Em paz e a salvamento!" "As vacas?" "Umas gordas outras magras!" "E o boi barroso?" Eu faço que estou triste e digo: "Saiba el-rei meu senhor que o boi barroso saltou um serrote e quebrou o pescoço..."Interrompendo-se, falava alto, indignado:— Isso não é palavra de Quirino, vaqueiro do rei!— Posso dizer que o boi barroso ia passando o açude e se afogou. Só pude salvar o couro.— Isso não é palavra de Quirino, vaqueiro do rei!E, chega-não-chega no pátio do palácio do rei, Quirino resolveu a questão. Pulou do cavalo, amarrou-o subiu as escadas, pediu para falar ao rei. Entrou na sala e o rei estava com o dito fidalgo que fizera a aposta, todo satisfeito, certo de ganhar.— Pronto, meu amo!— Como vai, Quirino?— Com a graça de Deus e o favor do meu amo!— A obrigação?— Em paz e a salvamento!— As vacas?— Umas magras e outras gordas!— E o boi barroso?— Saiba o senhor meu amo que o boi barroso deu o fígado para o meu filhinho não morrer!— Que história é essa, Quirino?Quirino contou toda a história e, quando terminou, disse:— Assim é que fala Quirino, vaqueiro dor Rei!O fidalgo ficou preto de vergonha. O rei findou dizendo:— Quirino, vaqueiro do rei, o que eu ganhei na aposta com esse amigo é o dote para casares com a mãe do teu filhinho...O que estava feito, estava feito. Quirino casou com Rosa e foram felizes como Deus com os anjos.
Informante: João Monteiro. Natal, Rio Grande do Norte(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 11ª ed. São Paulo, Global, 2002, p.138-140)